Relato do Acampamento Luta pela Vida

As imagens que acompanham esse relato foram feitas por Alass Derivas – Deriva Jornalismo.

Sou Mayra Almeida, uma mulher nascida em Belém do Pará, que reside no Rio Grande do Sul há 09 anos, pessoa cis e branca, e que dentro de suas condições busca ser uma apoiadora de causas que fortaleçam e tragam visibilidade para as questões indígenas. Antes de compartilhar meu relato propriamente dito, gostaria de expressar que reconheço a minha condição de pessoa não indígena privilegiada, assim como também tenho consciência de que não ocupo nenhum tipo de protagonismo dentro desta resistência e luta. Gostaria também de situar brevemente o início deste processo que considero como um ato de despertar e que me trouxe identificação com a luta em defesa dos povos originários e de seus territórios, que também é a luta pela vida. Desde 2014 sou adepta de uma caminhada espiritualista que pratica seus ritos através da sabedoria das religiosidades afrobrasilieras e indígenas. A primeira “conexão” consciente desse despertar se deu a partir de experiências pessoais vividas nestes rituais, porém senti que precisava ir além dessa esfera espiritual, necessitava compreender os aspectos sociais também, então aos poucos passei a participar de vivências em aldeias, buscar conteúdos produzidos a partir de uma perspectiva ameríndia e sempre que possível me envolver em movimentos de fortalecimento, preservação e divulgação da cultura indígena.

Em agosto deste ano (2021) estive na maior mobilização indígena que este território conhecido como Brasil já presenciou. A urgência da luta e a necessidade de resposta aos ataques constitucionais e projetos de extermínio deste (des)governo que encontra seu principal apoio em uma elite neocolonial, gananciosa e racista, foram fatores determinantes para que mesmo diante deste cenário de pandemia os povos se organizassem para fazer ecoar o seu grito de resistência. Com o apoio da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e da MNI (Mobilização Nacional Indígena) materializaram este histórico movimento que recebeu o nome de “Luta pela Vida”, um acampamento que oficialmente ocorreu de 22 de agosto a dois de setembro (mas foi além), ocupando a esplanada dos ministérios, em Brasília, e que reuniu em torno de 6 mil pessoas e mais de 170 etnias de todos os biomas deste país.

A escolha desta data se deu por conta do início da votação no STF (Supremo Tribunal Federal) da tese do Marco Temporal, que é defendida pela frente parlamentar da agropecuária, mais conhecida como bancada ruralista, que serve exclusivamente aos interesses do agronegócio e pratica uma política anti-índigena. Em resumo, o marco temporal consiste numa interpretação que considera que os indígenas só teriam direito a reinvidicar terras que já estivessem sob a sua posse na data da promulgação da Constituição Federal, em 1988, ignorando todo o histórico de violências e invasões sofridas ao longo desses 521 anos, que forçaram muitos povos a se deslocar de seus territórios originários. Se aprovada, esta tese pode impactar e prejudicar até 303 terras indígenas que estão em processo de demarcação. Essas terras somam 11 milhões de hectares, onde vivem cerca de 197 mil indígenas, que com seus modos de vida contribuem para a preservação e conservação ambiental, atuando como verdadeiros guardiões da floresta e da biodiversidade. Esses dados se baseiam em publicações feitas no Diário Oficial da União e que são monitoradas pelo Instituto Socioambiental (ISA).

Não satisfeita com o marco temporal que segue em votação no STF, a bancada ruralista tenta fazer valer a qualquer custo seu argumento, também através da tramitação do Projeto de Lei (PL) 490/2007, que além de contemplar o texto do marco temporal, proíbe a ampliação de terras que já foram demarcadas anteriormente e abre possibilidade de exploração de terras indígenas pelo agronegócio, mineradoras e construtoras. No dia 23 de junho, por 41 votos a 20, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou o parecer do relator do PL 490/2007, Arthur Maia (DEM-BA). O projeto foi encaminhado ao plenário da Câmara dos Deputados. Se aprovado, segue para o Senado e, posteriormente, para sanção presidencial.

Existe uma política de extermínio étnico e ambiental sendo paulatinamente construída e constituída. O momento exige luta e resistência, não que esta já não seja uma realidade enfrentada há muitos séculos, porém estamos diante de um cenário político que agrava ainda mais a situação. Temos um presidente que em seu discurso de campanha eleitoral gritava e afirmava que não daria nem 1 centímetro de terra para os “índios” – e de fato, desde o início da gestão deste governo, nenhum processo de demarcação foi concluído. A bancada ruralista, com sua política anti-índigena, é uma das maiores bancadas no congresso. Além de tudo isso, existe uma parcela significativa da população reforçando e dando legitimidade a discursos reacionários.

Estamos perante um verdadeiro cenário de retrocessos, que resulta em caos social e desigualdade, porém em outros tempos difíceis já dizia Chico Buarque “apesar de você, amanhã há de ser outro dia”. Não podemos esmorecer, esta anomalia política pode e deve ser combatida. Que em nosso dia a dia possamos recordar e reverberar como um mantra a ideia de que toda palavra e ação de apoio constitui uma micro política da resistência, sabendo que na contramão do retrocesso existe um cenário vivo e atuante, e que ele nunca deixou de acontecer. O ativismo e o artivismo espalham suas sementes de arte/luta viva que germinam e florescem em cultura – ahhhh a cultura, o melhor antídoto contra o pensamento que flerta com o fascismo. Movimentos sociais e frentes de lutas seguem se organizando e se articulando, sendo notável o aumento da representatividade e do protagonismo dos atores sociais destas lutas, resultado das políticas de ações afirmativas que ampliaram o acesso de pessoas indígenas e negras na academia e consequentemente nos âmbitos profissionais que há muito tempo necessitam dessa representatividad. A educação étnico-racial na formação acadêmica vem ganhando seu espaço (falando da Psicologia, não vivo a realidade de outros cursos). O avanço tecnológico nos permite ter acesso e/ou compartilhar informações/ideias/conhecimentos através de redes sociais que nos conectam com o mundo, bem como a insurgência de mídias alternativas de caráter contra hegemônico, multicultural e descolonizador de saberes, enfim, uma série de ferramentas disponíveis nos trazem uma dose de esperança e alimentam o sonho da tão almejada transformação social.

Mas voltando para a minha experiência/aprendizado/vivência nos dias de Acampamento, confesso que sigo em processo de assimilação e organização interna de todo o conteúdo emocional, espiritual e social que foi produzido e ressignificado no mais profundo e íntimo do meu ser. Poder ver com meus próprios olhos que aquele lugar tão sem vida e sem alegria, estava sendo ocupado e preenchido com tantas cores, cantos, danças, cachimbos, maracás, instrumentos de luta, rezas e seres encantados, me fez sentir uma emoção quase indescritível, já que me parece que nada do que eu escrever vai atingir a plenitude do que meu espírito e coração alcançaram naquele momento. Chegamos (eu, meu companheiro e um casal de amigues) no segundo dia de programação, em meio a plenária de acolhimento, que na realidade era um lindo festival cultural. Diversos povos diferentes apresentando seus cantos e danças carregados de significado espiritual e de força guerreira ancestral, dando o recado de que os indígenas estão prontos para retomar seus territórios, seus corpos e seus modos de vida e que não saíram à toa da Floresta. No decorrer dos dias foram acontecendo diversas programações, dentre elas plenárias, marchas, vigílias, pajelanças, noites culturais, exposições de artesanato e uma vasta troca de saberes ancestrais.

Também considero de extrema importância ressaltar que foram cumpridos todos os protocolos sanitários recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) no combate ao Covid-19, com distribuição e uso obrigatório de máscara e álcool. Todas as pessoas que faziam cadastramento de participação eram submetidas ao teste de Covid-19. A equipe de saúde do acampamento contava com profissionais indígenas e não indígenas. Houve parceria com a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), com a Fundação Oswaldo Cruz de Brasília e do Rio de Janeiro (Fiocruz DF e RJ), com o Ambulatório de Saúde Indígena da Universidade de Brasília (Asi/UNB) e com o Hospital Universitário de Brasília (HUB). A partir de acordos firmados e informações prestadas pelas delegações responsáveis por cada povo, era esperado que só participariam da mobilização indígenas devidamente vacinados. Até onde consegui me manter informada, não soube de nenhum caso confirmado.

Aproveitando o gancho de assuntos mais “logísticos”, também chamou a minha atenção o empenho e o trabalho desenvolvido no aspecto estrutural do acampamento. Havia dezenas de voluntáries indígenas e não indígenas contribuindo em uma grande variedade de atividades básicas e necessárias para o bom funcionamento da mobilização: 3 refeições eram oferecidas por dia, café, almoço e janta; distribuição de muita água pois o calor e a seca estavam intensos; havia estrutura para banho, caminhões pipa vinham várias vezes ao dia para fazer o reabastecimento de água; entrega de cobertores, lonas, fraldas, roupas, colchonetes, etc, enfim, muitas doações arrecadadas graças a um movimento estratégico de articulação entre a APIB e apoiadores da causa, o que tornou possível a permanência das 6 mil pessoas durante todo o período do acampamento. Outra questão que vale ressaltar é a parte da comunicação: havia um número significativo de indígenas envolvides na cobertura audiovisual, uma juventude engajada se apropriando de seu lugar de fala e empoderando o campo da etnomídia, nos possibilitando o acesso as informações a partir do olhar de quem vive no dia a dia os atravessamentos desta realidade.

Por outro lado não consegui abandonar totalmente meu olhar crítico e infelizmente observei situações pontuais que me geraram um nível de angústia, principalmente por perceber que elas são tristes heranças do processo colonizador e devastador imposto pelo homem branco. Não pretendo adentrar nesse aspecto, o propósito desse relato é fortalecer a mobilização e a luta indígena, deixo apenas essa pequena observação como um convite para não esquecermos de exercitar a reflexão. Existe uma dívida histórica, muitos povos sofreram e ainda sofrem com uma violenta imposição cultural e isso deve ser desconstruído com urgência imediata.

Vivenciar esta mobilização a partir de um lugar de observadora foi uma experiência sublime, uma imersão intensiva em um vasto universo antropológico, que carrega uma sabedoria milenar. Foram momentos muito marcantes, desde o início ao fim. Vou tentar pontuar os que já estiverem assimilados, muitos outros não vai ser possível relatar, pois acessei de forma transcendental e me permiti deixá-los exclusivamente no campo do sentir.

O canto e a dança do Povo Xikrin (Povo de Língua Kayapó, que vivem em Terras Indígenas no Sul do Pará) me remeteu a uma viagem mítica, como se aquelas pessoas fossem a própria floresta e seus seres estavam materializados naquele canto, uma ancestralidade pulsante que me conduziu para um outro tempo/espaço, uma divina força cósmica guerreira, impossível não se emocionar. A beleza do povo Huni Kui (Povo da Amazônia), uma explosão de cores que traduz visualmente a psicodelia mágica dos seus (en)cantos com uma musicalidade contagiante, violões e charangos fazendo a conexão de quem sabe navegar no mundo mágico das medicinas da floresta, muito acolhedores, se alegram em compartilhar suas sabedorias com os nawá (pessoa não indígena). Os povos juremeiros do nordeste (Tupinambá, Xukuru, Pataxó) mesclando sabedorias afro com sabedorias indígenas, representando a verdadeira essência deste território que os colonizadores nomearam como Brasil, mas que na realidade é Pindorama, uma Terra mestiça, abençoada por Tupã/Nhanderu/Nhandexy/Olorum/Iemanjá/Deus/Deusa, chegavam com seus tambores ecoando, pisando forte naquele chão, defumando para afastar os maus espíritos, dançando e balançando o catimbó pra trazer o inimigo amarrado no cipó, eitaaa povo arretado. Minha barraca estava próxima da delegação Mbya Guarani (região Sul) um povo de aura pacífica, que costuma falar pouco pois o ato de falar deve estar alinhado ao propósito do sagrado (ayvu porã – fala sagrada), utilizam o petynguá (cachimbo), seu instrumento de rezo e de luta, gostam de partilhar momentos ao redor do fogo sagrado (tatá porã), a música também é um elemento muito presente na sua cultura. Muitas vezes eles adentravam a madrugada entoando seus cânticos e o meu sono era embalado por aquele ritmo constante e suave do mba’epu (violão Guarani).

O povo Guarani também protagonizou um momento bem especial dentro do acampamento. O julgamento estava previsto pra iniciar no dia 25 de agosto, mas o juruá reko (modo de ser não indígena) às vezes é bem sórdido e a votação foi suspensa. Havia toda uma expectativa em relação a essa data. A marcha iniciou cedo, marchamos até a frente do STF em torno das 14h, embaixo de um sol escaldante, com a intenção de pressionar e acompanhar a votação. Após a notícia do adiamento bateu uma sensação de que o cansaço e o desânimo pediam passagem, porém quem resiste há muitos séculos não se deixa abater com facilidade, e a juventude Mbya chegou no acampamento levantando poeira (literalmente), cantando e dançando pra se alegrar, xondaro kuery (forma plural e coletiva de xondaro, os guardiões, os guerreiros ) iporã (belo, sagrado) afastando qualquer espírito ruim da tristeza.

As marchas até a frente do STF eram consideradas momentos estratégicos, havia um pouco de de tensão, pois não se descartava a possibilidade de intervenção violenta da polícia, mas de modo geral foram manifestos pacíficos. Essas marchas também eram marcadas pela visibilidade que traziam para a mobilização, pois aquela região tinha que parar e ouvir o grito dos povos originários, por mais que quisessem ignorar não tinha como não ser afetado pela luta indígena ocupando aquele espaço. Pajelança e vigília em frente ao STF, dorme com esse barulho, Brasília.

As marchas aconteciam no período da tarde e no turno da manhã as plenárias, que abordavam diversos assuntos, tanto da esfera política quanto da esfera sócio-cultural. Achei muito interessante a plenária dos cinco poderes, que trouxe para o debate uma análise de conjuntura dos poderes legislativo, judiciário e executivo, mas também reforçou que essa luta é construída com mais outros dois poderes, o poder popular, que é o levante das massas e do povo, os verdadeiros agentes políticos de uma sociedade, e também o poder espiritual, que é poder da criação, da natureza, a verdadeira sabedoria, que fortalece e protege contra todas as mazelas do homem, a justiça divina que preexiste a justiça do homem, que não serve a interesses mesquinhos e gananciosos e honra a sagrada vida de todes seres.

A plenária das mulheres indígenas, também foi um ápice pra mim, falas muito potentes que me causaram arrepios e muita emoção, mulheres unidas, honrando as que vieram antes, as que foram silenciadas e violentadas, agora elas renascem e vem empoderadas em suas lutas, dizendo que já basta, chega de invasão e exploração de seus corpos/territórios, chega de abusos com a grande mãe, nossa Pachamama, útero da natureza, mãe cósmica, detentora da fonte da vida. A violência patriarcal agride esse organismo porque odeia as mulheres e sabe que a Mãe Terra é o arquétipo da primeira grande mulher, porém Pachamama está dando seu recado, ela chegou ao seu limite e o tempo de submissão se esgotou, seu poder é gigante, por mais maltratada que seja, tem o dom de se regenerar, e nós seres humanes, seus ingratos filhos não temos essa capacidade, estamos destruindo nossa espécie. Desperta humanidade, ouça o chamado dessa generosa e benevolente madrecita, ainda dá tempo, vamos regenerar nossas mentes e nossos modos de vida, o bem viver habita na integração e não na exploração.

Essa plenária das mulheres foi apenas uma pequena amostra do que viria em seguida. Dos dias 07 a 11 de Setembro ocorreu a segunda Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, com o tema Mulheres originárias: Reflorestando mentes para a cura da Terra”. Linda e certeira escolha do tema, contemplou o que representa a mulher indígena, a mais ancestral, a guerreira, a curandeira, aquela que é a própria natureza, mulher medicina. Se existe uma personificação de Mãe Gaia, ela sem dúvidas é a mulher indígena. Encerro meu relato manifestando o mais profundo respeito e admiração aos saberes ancestrais dos guardiões da natureza que lutam pelas nossas vidas.

Diga ao povo que avance!

Abaixo compartilho um trecho da fala de Shirley Krenak, durante a plenária de mulheres:

Nós somos árvores enraizadas sobre essa terra sagrada, e nós temos o poder de curar o mundo. Nós temos o poder de curar o mundo, nós somos empoderadas na luta. Nós somos empoderadas na luta, receba a energia sagrada de todas as mulheres aqui presentes, porque nós somos sagradas, nós somos sagradas! Receba essa energia e se empodere deste momento, e faça desse momento algo que dê valor ao seu corpo, à sua alma, à sua essência e todo o sangue que circula dentro de você, porque nós somos terra, nós somos folha, nós somos vento, nós somos toda a força do universo. Nós somos mulheres universo, nós somos mulheres reflorestando mentes para a cura da terra!”

Compartilho também alguns perfis e canais para quem quiser saber um pouco mais sobre a luta indígena e/ou assistir vídeos do acampamento “Luta pela vida”:

https://www.instagram.com/apiboficial/ APIB Oficial

https://www.instagram.com/anmigaorg/ ANMIGA (Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade)

https://www.instagram.com/shirleykrenak/ Shirley Krenak

https://www.instagram.com/guajajarasonia/ Sonia Guajajara

https://www.instagram.com/derivajornalismo/ Deriva Jornalismo

https://www.youtube.com/channel/UCwLx54yitQyX97kul5lBxQw/videos Deriva Jornalismo

https://www.youtube.com/channel/UChmiExstG7knT15LXJmIiHw Partilha MusiCósmica

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