O sonho Junana

Um sonho vivido. Que se sonha entre muitos corações e se caminha a muitos pés, em diferentes tempos e espaços.

Um sonho tecido com fios que se desenrolam de muitos sonhos sonhados e vividos. Que se desenha na fumaça de cachimbos há muito acendidos, em nuvens de fumo ancestrais que dançam no ar formando desenhos nunca antes traçados.

Somos novos, somos velhas, somos espigas de milho que nascem de sementes milenarmente guardadas, compartilhadas em confiança de geração em geração. Pedaços de uma memória que é tesouro que se conserva, mas não só. Um tesouro que não apodrece, que não se esquece em algum velho baú porque se compartilha, porque se transforma, como tudo o que é vivo. 

Memória viva que é semeada, floresce e dá novos frutos. Frutos que geram novas sementes. Sementes que se compartilham. E o ciclo ancestral se perpetua – e se renova. 

Nosso tesouro é vivo e é comum. De todes. Basta saber reconhecê-lo nos caminhos do cotidiano, no olhar de suas guardiãs e guardiões. No murmúrio das águas. Nas folhas das matas. 

Basta saber cultivá-lo. Basta observar. Escutar. Caminhar em compasso com o ritmo da Terra. São sementes, saberes e fazeres. Leis cósmicas, ciclos de vida. Tecnologias ancestrais. Modos de existir. Re-existir. Em comum. 

Nosso tesouro é compartilhado. Porque é fruto e pressuposto do próprio compartir. A autonomia frente aos poderes de cima – que a tudo insistem em tratorar, que a tudo tentam destruir, que querem nos manter reféns de um modo de vida doente e insustentável em prol do lucro de poucos – só pode ser alcançada com a interdependência entre nós, de abaixo. Interdependência entre todas as forças, todos os seres que respeitam os ciclos da vida e sua inerente diversidade. 

Um nós tecido por muitos nós, que se complementam em redes. Redes de vida boa. Para todes. Seja gente, seja rio, seja bicho, seja planta. Seres visíveis ou invisíveis. 

Respeito. Apoio mútuo. Autonomia interdependente.

Do exercício do bem viver em comum, na lida diária da agroecologia, dos rezos e da coletividade, nas práticas de cura, música e bioconstrução, nos constituímos Junana – juçara com banana,  alimento saudável, frutos da floresta, desta biorregião úmida e fértil que chamam Mata Atlântica.

Somos território que ultrapassa fronteiras geográficas, porque não existem barreiras para a solidariedade, o espírito, a vida e o coração. Os esporos voam, germinam longe. Os povos sempre partilharam suas sementes. Uma teia que se conecta no que denominam município de Maquiné, essa confluente efervescência de Bem Viver, e além: Rio Grande do Sul, Brasil, América Latina, Yvyrupa, essa terra sem fronteiras artificiais que nos abriga e nos nutre. 

Somos aprendizes da viva ancestralidade Guarani, entre tantas outras ancestralidades que caminham, entre tantos outros povos que lutam. Acreditamos e vivemos arte, rezo e luta. Arte resoluta. 

O mutirão é nosso rezo feito carne. A complementariedade que nos permite ser e fazer, juntes, o que não podemos, nem queremos, fazer sozinhxs. A solidão é uma ilusão. Tudo se conecta. O que importa é como. Cultivamos a consciência coletiva, que se alimenta da diversidade.

Compartilhamos sonhos, dores, saberes, fazeres, mandioca, milho, juçara, inhame, taioba, peixinho da horta, poesias, músicas, rebeldias, ervas, brotos, angústias, curas, ferramentas, instrumentos, arquivos, livros, medicinas, mudas, sementes, alegrias, danças, rodas, mates, desafios, histórias, fogueiras, receitas, banhos de cachoeira, bruxarias, massagens, rezos, caminhadas, cerimônias, comidas, improvisos, estudos e muito trabalho. 

Compartilhamos nossas necessidades e vontades. Nossos dons e fragilidades. Nossas palavras e silêncios. Compartilhamos nossas individualidades e nossas lutas. Que se complementam.

Cantamos e nos organizamos nesse mutirão da vida que constrói a Nova Era Ancestral. Em comum. Entre nós. Ao redor do tata porã, o fogo sagrado, que ilumina, aquece e transmuta. Em rede, entre os muitos círculos que nutrem foguinhos, que insistem em se manter acesos, apesar de tudo, apesar das trevas. 

Somos singelos vagalumes, mas somos muitos. Dançamos juntes. Re-existimos. Sabemos que das profundezas da noite sempre ressurge o amanhecer.