Um Recado da Mãe Terra
Equinócio de outono no hemisfério Sul. Essa estação em que as folhas caem, os dias vão ficando mais curtos e as noites mais longas. De introspecção. De colheita e avaliação do ciclo. O que semeamos? Deu frutos? Nos nutre?
O que semeamos enquanto humanidade? Estamos colhendo medo, angústia, peste, caos. Plantamos sementes de egoísmo, de subserviência aos podres poderes, de falso isolamento (falso porque, querendo ou não, na vida nada está isolado… E tudo, vírus e intenções, se propaga pelo ar…).
Talvez um dos ensinamentos mais importantes que esta pandemia nos traz é a lembrança de que somos todes tripulantes da mesma Nave-Mãe Terra, argonautas em uma jornada coletiva pela Vida e pelo Universo. Não há plano B para o planeta Terra, não há reposição caso este mundo se torne inviável.
Esta crise do Coronavírus surge sobreposta a outras crises profundamente alarmantes, mas que não causaram tanta comoção: as mudanças climáticas, trazendo impactos cumulativos e cada vez mais profundos nos ecossistemas e nas vidas de milhões de pessoas; a crise da democracia global, em que as nações concedem cada vez menos liberdades e direitos aos indivíduos, que são mais e mais monitorados tecnologicamente num mundo em que a capacidade de comunicação cresce exponencialmente, mas a tendência à livre organização talvez não; e uma crise civilizatória, na qual o modelo de vida baseado no consumo encontra seu reflexo na depressão, na ansiedade, no individualismo e na artificialização da vida.
A miséria de cada dia. A injustiça de cada dia. Muitas crises que formam uma grande crise. É aquela velha história: o sistema capitalista é, em si, a crise. Quantas pessoas morrem de diarreia e desnutrição a cada dia?
Os vírus da gripe, do sarampo e da varíola mataram um número estimado entre 8 e 20 milhões de indígenas nos séculos XVI e XVII no continente de Abya Yala. Já é muito conhecido por pesquisadores como Jared Diamond, que publicou seu livro Armas, Germes e Aço – Os Destinos de Sociedades Humanas (1997), o papel das doenças contagiosas no enfraquecimento e posterior colonização de culturas ancestrais. Há vários relatos de que pequenos grupos de europeus, avançando a pé ou a cavalo continente adentro, impunham suas demandas, sua religião e suas visões de mundo com facilidade diante de povoamentos enfraquecidos, amedrontados e cujos ritos e dinâmicas de vida estavam comprometidos por doenças desconhecidas àqueles povos.
Sabemos que o processo de colonização nunca deixou de acontecer, e que a história muitas vezes se repete, sob novas roupagens. Do ponto de vista do Bem Viver, é extremamente perigoso que estejam suspensas as mais cotidianas formas de relações orgânicas, como festividades, reuniões presenciais, atividades culturais, feiras, cerimônias espirituais ou simples visitas entre amigxs e parentes. Isso representa uma avassaladora crise cultural, que afeta nosso senso de pertencimento como os muitos povos que somos.
Observamos diversos fenômenos de solidariedade e manifestação de conexão humana surgindo em meio à crise. Perniciosamente, grandes redes de televisão declaram: “o isolamento nos aproxima”. Essa afirmação soa como mais uma forma dos donos do sistema, propagando sua voz pela mídia de massa, tentarem fazer com que nos conformemos com a situação.
Não é o isolamento que nos aproxima, e sim a suspensão do status quo social, a suspensão da inexorável força do cotidiano massificado, das escolas, do trabalho, do trânsito, da prioridade absoluta de cada indivíduo ou família nuclear de resolver seus problemas particulares. Como é possível que até mesmo empresários estejam abrindo mão do seu lucro pessoal, como é o exemplo de indústrias distribuindo gratuitamente etanol para a fabricação de mais álcool gel?
A solidariedade é o resultado deste contato cotidiano com a narrativa de um drama comum, uma espécie de novela da humanidade, algo que nos envolve e nos convoca a sairmos de nossos cotidianos passivos e atomizados para focarmos de forma cooperativa na superação de alguma grande questão social, que nos toca a todes. Essa narrativa tem muito poder, e novamente nos deparamos com o potencial de transformação resultante de sincronizarmos nossas energias e focarmos nossa intenção no bem comum.
Se essa mesma narrativa infinita, alarmante e sensacionalista em torno do vírus for utilizada para focar esforços na transformação radical do modo de produção que gera as artificais mudanças climáticas, na reconstrução das democracias e governos comunitários e na retomada de modos de vida mais harmônicos e integrados com a terra, qual não será a nossa potência? Entretanto, a única força que motivou esse nível de sincronia da mídia hegemônica e de nossas pretensas lideranças foi uma ameaça de curto prazo à ordem social capitalista. Não é à toa que as notícias mais frequentes, após os números de contágios e mortes ocasionado pelo vírus, são das consequências econômicas desta crise de saúde.
Percebemos então o poder gigantesco que os meios de comunicação têm sobre a nossa sociedade. Aquilo que comunicamos insistentemente, criando ou reproduzindo, acaba sendo referência para a construção daquilo que é. Nossas verdades são amarradas com muitos nós nas redes sociais, e estamos testemunhando a importância cada vez maior dos grupos digitais como espaços de construção de opiniões e ações comuns, servindo mais do que nunca para articular encontros também digitais.
Temos o desafio agora de afirmar e compartilhar qual é o tipo de sociedade que queremos. Já está claro que o mundo não voltará a ser o mesmo após o Coronavírus, e isso é uma grande oportunidade de agirmos para que ele se torne um lugar bom de se viver, e não um gigantesco salve-se-quem-puder em escala global.
Essa crise mostra a urgência de desadensar os grandes centros urbanos e buscar opções e oportunidades no meio rural, em pequenos núcleos habitacionais focados em processos cooperativos – afinal, seres humanos com suficiência alimentar, água e teto, num ambiente saudável e agradável e em cooperação entre si, são bem menos vulneráveis às grandes crises. E que, assim, as cidades sejam outras, viáveis, sustentáveis. O papel das redes de apoio é crucial na reorganização econômica, e a economia solidária precisa ser muito fortalecida, com a criação de grupos de trocas econômicos mais locais e diretos, em que a intimidade e produção de riquezas reais e relevantes são maiores.
Estamos vivendo um grande desafio para a nossa capacidade de autonomia, para encontrarmos na simplicidade, na convivência, no apoio mútuo, na arte e na natureza – que somos nós –, nossos verdadeiros tesouros que fazem a vida ter sentido. Este é o momento de focarmos nossos esforços.
O Coronavírus veio tirar a humanidade de uma inércia, um automatismo operacional que apenas visa otimizar os fluxos já existentes. Que mensagem estará sendo passada por esta doença a toda a humanidade? Que possamos aprender algo com esta lição, e recuperar nossa capacidade de escolha e co-criação.
Quais modelos de sociedade foram interrompidos e/ou marginalizados, e qual é a sociedade que queremos construir para conviver quando a quarentena passar? Que tipo de mundo queremos semear para as próximas gerações que estão por vir?
A Boa Nova
Esse outro mundo que precisamos, um mundo em que o ser humano se equilibre entre si e com todos os seres, com a natureza, da qual faz parte, já existe. Está bem diante de nossos olhos – basta desviar o olhar da tela do espetáculo para olhar os povos que resistem e existem. Re-existem. Nas brechas.
Um mundo em que caibam muitos mundos, em que a diversidade possa florescer, como numa grande agrofloresta. Em que nenhuma monocultura venha tratorar as diversas formas de ser e existir em equilíbrio com os ciclos da vida.
Somos novos frutos de sementes ancestrais. Somos milho de diversas cores que brotam de sementes que foram semeadas, escolhidas e repassadas de geração em geração. Honremos as sabedorias ancestrais. Não nos contentemos com as sementes transgênicas de grandes corporações que – não à toa – não reproduzem! Não nos contentemos com um modo de viver e pensar infértil.
Que nossas comunicações sejam cada vez mais verdadeiras e com sentido. Menos quantidade e mais qualidade. Fontes confiáveis. Nossas mentes e corações em sintonia. Que estejamos centradxs. Presentes. Conscientes daquilo que replicamos redes afora. A mídia é nóis.
É a hora da guinada. Sempre é. Basta aceitar o chamado da vida, o chamado dxs nossxs ancestrais. A crise clama por consciência e organização. Nos organizemos para que, em consciente interdependência com todo o ciclo da vida, não dependamos mais dos podres poderosos. Que nossas redes de apoio mútuo possam suprir as necessidades de todes e cada um. Que a nossa existência seja uma grande dança de celebração da vida, não um lamento impotente de morte.
Não se dá de uma hora pra outra. É trabalho! Reflorestar todo um campo exaurido por décadas e décadas, ou séculos e séculos, de exploração, venenos e monocultivo, exige esforço, organização, dedicação. Trabalho em rede, coletivo. Mas os resultados começam a aparecer rapidinho. Dentro e fora de nós. A natureza se recupera mais fácil do que imaginamos. Como el musguito en la piedra… É só deixar a vida florescer.
Seguimos nesse aprendizado coletivo. Nos inspiremos nas constelações, estrelas no céu a nos guiar, estrelas de povos guardiões da floresta que re-existem ancestralmente. Cuidemos para que não sejam tratorados. Todo nosso apoio é necessário.
O Bem Viver sobreviveu a séculos de colonialismo na multiplicidade de culturas de raiz dispersas pelo continente, para ver suas sementes se espalharem pelo vento em plena era digital. Sobreviverá também ao Coronavírus e terá novas oportunidades de vicejar. A natureza sempre nos surpreende com sua inteligência complexa e em eterna mutação. Assim também é a história humana, uma caminhada coletiva continuamente sendo escrita no agora.
Escolhamos as boas sementes. Defendamos as terras, nossa casa. Seus povos guardiões. Nos preparemos para a boa semeadura. Cuidemos das nossas relações e rezemos humildemente para que este outono renove aquilo que já não serve mais, dentro e fora de nós, para que novas folhas e frutos possam vir.
A natureza é nóis.
A boa nova é ancestral – e se renova.
Outra análise coletiva que fizemos num momento anterior a esse vírus global, quando o gatilho de reflexão eram as revoltas globais: Não é uma crise, é que já não te quero: uma leitura anticapitalista da atual onda global de protestos a partir do Bem Viver
Como el musguito en la tierra…
Nós sobreviveremos enquanto a alegria e a doença afluírem no tempo.
Mas perderemos ferozmente enquanto admitirmos (ou inventarmos) inimigos.
A vida, ela mesma continuará seu percurso, conosco ou sem osso, nas rochas ou no ar muito provavelmente.
obs.: onde estão as pessoas negras, gays e trans nessas comunidades rurais? Já observaste que são as pessoas brancas/heteros/de classe média (em sua maioria) que podem procurar estes tipos de espaços? Parece uma espécie de inversão, né? Como disse Viveiros de Castro, índio no Brasil foi transformado em pobre, e hoje, quem tem o privilégio de desfrutar desse contato com a floresta? Veja bem, não é uma crítica de extermínio, eu vejo como um tipo de aliança. Mas existem outras linhas linhas de frente, e nessas outras linhas, a trama que se dá, muitas vezes tem que abdicar do considerado “saudável/natural” e criar outra concepção de vida.
beijos e parabéns pelo texto, me contempla em vários aspectos.